Ele
caminhava para longe? Para muito longe! Caminhava apenas. Não sentia vontade de
parar desde que há algum tempo tinha iniciado a marcha. Cada vez mais se sentia
com vontade de caminhar. A cerca de dois metros, vinham atrás dele, os
problemas. Os seus problemas. Tinha-os deitado para trás das costas. Quanto
acelerava o passo eles aproximavam-se. Decidiu que seriam companheiros dele
nessa jornada. Não adiantava acelerar que nunca os deixaria para trás.
Caminhava apenas. O caminhar fazia-lhe bem. Sentia-se bem. Não tinha os
problemas em cima das costas. Elas folgavam e por isso mais claramente podia pensar
neles e tentar resolvê-los. Pensou. Um de cada vez. Apenas um de cada vez. Mas
antes tinha que saber se o que o perseguia eram problemas. Se eram realmente
problemas aquele «saco de acumular» que o seguia. Sim. Seguia-o para onde
fosse. Onde estivesse, sentia sempre esse saco em cima das costas. Encontrava-se
numa encruzilhada. John era um tipo prático. Um
tipo comum a tantos outros. Com vontade de fazer, de realizar, de programar refletidamente
cada passo que dava.
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Lembrou-se
que naquele dia distante se encontrava num bar de uma festa de gente bonita
ouvindo o que mais gostava, música que já não se faz. John sentiu aquele
lampejo, aquela sensação indescritível, mas que facilmente é reconhecível por
qualquer um que já a tenha sentido. O tipo de intuição que nos martela a cabeça
e faz com que nós pensemos que estamos na presença de alguém, apesar de não a
conhecermos, que será a resposta para todos os nossos porquês, os nossos
indefinidos, acima de tudo a nossa busca. John pensou e quis acreditar ter
visto nela, nos olhos dela, o mesmo tipo de faísca que se acendera dentro dele.
Bastaram dez minutos de conversa banal para que acreditasse. Tinham os mesmos
gostos, o mesmo falar pausado e a mesma calma na voz. Gostavam do mesmo tipo de
música. Aparentemente o ajustar era perfeito. Faziam críticas ao mesmo tipo de
comportamento que as pessoas apresentavam. Apesar desta sintonia
discordavam de alguns pormenores. Parecia bom sinal. Mostravam que tinham
apesar de tudo, (o querer agradar no primeiro encontro leva-nos a concordar
quase de imediato com o outro) a personalidade e carácter vincados. Ou seja, tudo
parecia uma identificação instantânea.
Tudo
corria bem até que John decidiu sondar um pouco
mais o “feminino” que lhe tinha aparecido de repente na sua frente. Bem, de
repente não é bem assim. Estando sentado a curtir
um som com o seu grupo nem reparou que Clara se
tinha aproximado dele. Só reparou nela quando lhe disse, «posso sentar-me?», apontado para o banco que estava a sua frente. «Claro, claro», respondeu. Com muito
cuidado foi reparando nela. Com muito mais cuidado, depois de se terem
apresentado e da conversa inicial, perguntou: «Não és destas bandas?» e
acrescentou, «estás com alguém?». A resposta não se fez esperar. «Não sou e vim
com o meu namorado, aquele além», apontando com o dedo para o tipo que estava
no meio da pista a dançar. O sangue de John arrefeceu, quando ouviu o termo
namorado e gelou quando o seu olhar fixou o Neandertal que gesticulava por
todos os lados como se de um gorila se tratasse. John, reconheceu-o, era um
antigo colega seu de faculdade. Chamavam-no de “Mr.O”. O nome dele? Orlando. Mas o “Mr.O” tinha outro significado.
Veterano do curso de engenharia, nunca aparecia nas aulas. Mas nunca faltava a
uma festa. Pela corpulência, um pouco desajeitada, era em surdina apelidado de
“Ogre”. Mas tinha algo que as raparigas da faculdade achavam algum interesse,
talvez porque certo dia, tenha salvado das garras de um namorado tresloucado,
uma certa donzela. Claro está, que isto se espalhou por todas as donzelas da
faculdade ávidas de novidades. O namorado tresloucado teve que ser
hospitalizado e mudou de faculdade. “Mr. O”, sentia-se um autêntico guarda
donzelas. E não havia festa que não comparecesse para ser útil em qualquer
situação de emergência.
John
ao retirar o olhar de “Mr. O” que continuava a gesticular para todo o lado, tinha
um meio sorriso amargurado e a fazer um esforço por não se desmanchar a rir.
Tal como numa comédia romântica, a mulher, (o mulherão!) que se encontrava a
sua frente namorava com o maior troglodita que até então tinha encontrado. Mais,
“Mr. O” aparentemente mal se lembrava que Clara se encontrava no bar. Assim,
John propôs a Clara, que fossem até ao terraço que se encontrava para lá da porta
de entrada do bar para estarem mais à vontade e não serem importunados pelo
olhar por vezes inquisitório de “Mr. O”.
Quanto
mais John conversava com Clara mais inconcebível lhe parecia que “Mr. O” não
encaixava na candura e na afectuosidade dela. A dúvida tornou-se incompreensão,
que por sua vez se transformou em indignação ao ponto de exclamar com um surto
nervoso de romantismo, «Como é possível que andes com um bruto como aquele? Não
tens nada a ver com ele! Eu posso dar-te muito mais do que ele. Eu poderia
dar-te até a lua e as estrelas se me pedisses!»
De
rompante, por trás deles aparece uma voz a dizer, «Podem parar com essa merda?».
A voz foi tão cavernosa e intensa que a música parou para a fazer ecoar mais
profusamente. Claro está que um amigo de “Mr. O” tinha dito ao DJ para parar a
musica no momento exacto em que ele, “Mr O”, se chegasse ao pé do casal de
pombinhos. Assim o séquito de presentes assistiu em direito e a cores a cena de
telenovela mexicana de fim de tarde. «Onde vocês pensam que estão?» Continuou
“Mr. O”, «Nós estamos aqui ao lado e acham que somos surdos?» John cheio de
coragem, ou de cerveja, decidiu enfrenta-lo. «Não faço nenhuma questão em
esconder o que disse. Não mereces uma mulher como Clara». Sente-se a tensão no
ar. Tudo suspenso à espera do desenrolar dos acontecimentos. Apostas são feitas
mentalmente. Há quem pense que «a este vai-lhe acontecer o mesmo que ao outro».
Mas “Mr. O”, mantendo-se calmo, apenas esboçando um sorriso sarcástico responde,
«Ah... Conheço os da tua laia. O velho truque do D. Quixote. Então achas que és
melhor do que os outros, que és o cavaleiro em busca da verdade e da justiça,
que salvará as donzelas em perigo. Pois fica sabendo que quando conheci Clara
ela estava sozinha. Se algum de nós esta errado és tu. O senhor, cavaleiro da
armadura brilhante, é só mais um folgado a tentar roubar a namorada dos outros.
Se fosses tu que estivesses no meu lugar não irias pensar duas vezes antes de me
condenar. E apesar de achares que estás a fazer a coisa certa, acontece que a tua
donzela virginal no momento que te escolhe e vai contigo torna-se numa qualquer
que trai o namorado com o primeiro malandro que vem com conversa mole. O
resultado seria, nobre cavaleiro protector de donzelas, que o D. Quixote e a
bela donzela se tornariam um velhaco e uma rameira. Vamos embora daqui» E enlaçando
Clara pela cintura, mas com a delicadeza de uma retro-escavadora, “Mr. O”
encaminhou-se para a porta de saída e resmungando ainda disse, «Lua e estrelas,
…, além de tudo faz promessas que não pode cumprir!» Saíram do bar, mas não sem
antes Clara lançar um olhar para trás e atirar uma piscadela safada para John.
A caminhada contínua teve ser interrompida. Sentiu que necessitava disso. A lembrança deste episodio fez com que John sentisse que “Mr. O” tinha toda a razão. A vida não é
uma comédia romântica e amaldiçoou novamente a lógica e a realidade como na altura o fez quando
ficou especado de pé a ver o casal sair do bar.
Sente-se um pouco cansado ao
lembrar-se desta história. Deste problema carregado há alguns anos. No entanto, retirou dele um conselho útil. E assim, esvaziou um pouco o seu
saco.
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