sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Capitulo 5 (O Caminhante)



As coincidências levam ao destino. As coincidências só o são por si mesma, porque cada um de nós as cria. Cada um de nós as fazem viver com a intensidade de uma corrente de água de um rio que ao chegar as escarpas de uma montanha, após ter brotado de uma fenda pequena da profundeza da terra, ruidosamente e freneticamente correm declive abaixo. Momentos de coincidências existem para nos mostrar que o acaso governa. Que o livre arbítrio é mais uma ilusão. É mais uma ironia do destino.
 John, naquele dia apaixonado com o que os seus olhos vêm sente-se mais uma vez ludibriado pela sua existência. A existência de ter que existir. De ter que se fazer valer das suas propriedades intrínsecas para intender que o exterior o influencia. «Como posso não existir se o que existe sempre me faz lembrar de ti e que tudo não é mais que a minha própria existência». Filosofando consigo mesmo, torna-se moralmente equilibrado. Cada momento só o torna mais avido do outro. O excesso na medida certa torna-se felicidade. Mas de que forma sabemos nós que quantidade é o excesso certo? O bem-estar muitas vezes se confunde com o poder de ter. O poder de saber.
Há quem diga que estes pesadelos se dissolvem ao sol. John acredita nisso. Caminha á beira-mar nesse dia. Olhando para o cheiro da maresia que lhe entra pelos olhos, sente-se feliz. A gaivota que faz uma tangente no horizonte mostra-lhe que o bem-estar não é mais que ter liberdade de movimentos. O futuro só vale a pena se tiver passado e este se for construído no presente. A liberdade de movimentos serve como muleta para fazer um enriquecimento interior. Essas propriedades intrínsecas que tanto pensa John não passam de meras acumulações. De meras vivências. De meras coincidências. De acumulações constantes de momentos que se tornam passado. Recorda-os com afinco. Recorda-os com paixão. Tem passado, pensa. E presente?
Senta-se numa esplanada a olhar o mar. A sentir a brisa que lhe afaga a cara já com algumas rugas sulcadas. Olha em volta e nota um jornal colocado e perto de esvoaçar para longe junto a mesa contigua a dele. Pede um café e um copo de água. Apanha o jornal antes dele se embrenhar pelo mundo. Folheia-o. Sem pensar olhar para uma história escrita. “A paciência é o intervalo entre a semente e a flor “. Acha interessante o título. Decide lê-la.
“A paciência é o intervalo entre a semente e a flor” pensou ele naquela manhã de outono. A paciência. Que remedio tinha se não ter paciência. Era um homem paciente. “Dentro do género claro”, pensava ele. Por vezes intempestivamente deitava tudo a perder. Estava-lhe na “massa do sangue”. “Não me pisem os calos” repetia continuamente para os seus botões. Fazia tudo por estar bem com a vida. Fazia tudo por estar bem com a companheira que nesse momento tinha. Fazia tudo. Preocupava-se sempre por tornar agradável a sua companhia. Fazia tudo para que a sua “cara-metade” se sentisse bem com ele. Pouco ou nada se preocupava com ele. Mas se lhe “pisassem os “calos”, isso já era outra coisa. Tudo o que de bom lhe acontecia na vida era facilmente colocado de lado. De nada valia mais tarde arrepender-se do que tinha feito. Pouco tempo perdia com arrependimentos. Passava rapidamente a fase seguinte.
Mas neste caso concreto que o lhe ocupava a mente nestes últimos tempos o ciclo tinha-se quebrado. Esse ciclo que tão laboriosamente tinha construído ao longo dos anos. Ela mostrava-se de vez em quando. Seja por correio eletrónico, por mensagem ou um telefonema esporádico. Eram contactos em que ela gritava bem alto, “estou aqui!”. O encontro de café com conversas de circunstância. “Estas bem? As coisas correm bem contigo. Sim e contigo? Também”. Mentiras ditas e entendidas pelos dois. Não estavam bem. Não se sentiam bem. A vida tem que correr. Devagar. Mas tem que continuar. “Como esta … o trabalho… a família…”. Esta tudo a correr e Tu? Também”. Varias palavras não ditas. Varias palavras mal ditas. Malditas palavras que levam irremediavelmente ao azedume. E sem querer um deles levanta-se. Esperando o que outro interrompa o movimento, separaram-se. Mais uma noite de pesadelo e sonho. Do que poderia ser e não é. Do que poderia ter continuado e não continuou. Segue-se mais um dia. Sem pensar. Mais uma mensagem via correio eletrónico ou outro contacto qualquer. O “jogo” cansa. Torna tudo mais ténue. Desvanece a lembrança do corpo. Do olhar. Da preocupação. Morrem dentro. Matam-se por dentro, continuamente. Cada um sente que nada mais há a fazer. Mas não se dão por vencidos. Encontram-se novamente. Os movimentos dos seus corpos demonstram o contrário das suas palavras. Voltam novamente a separar-se. Sentem o peso da alma. Cada vez mais fria. Cada vez mais mirrada. É preciso perdoar. É preciso não ter ilusão. “Ela não mereceu”, pensa ele. “Ele não mereceu”, pensa ela. Mas eles mereceram o que lhes aconteceu. Tudo não passou de uma quimera, de um sonho louco de um lunático em delírio esquizofrénico num hospital psiquiátrico. Era impossível que o que sentiam um pelo outro se tornasse realidade por muito mais tempo. Sem se ferirem. Sem se magoarem. Sem se anularem mutuamente. Mas os encontros tornam-se terapia. Cada vez mais espaçados no tempo.
Nesta manhã de outono sente que isso é a verdadeira razão de se encontrarem. Esses encontros são feitos de perdão. Esses contactos de mágoa controlada. “ Perdoa-me” diz-lhe o seu olhar fugidio e por baixo dos óculos escuros a esconder os olhos. “Perdoa-me” diz-lhe a ela as sua mãos que não param de mexer no cigarro encima da mesa. De nada vale agora o arrependimento. Mas mesmo assim encontram-se. Tornam-se prisioneiros desses encontros. Ele querer quebrar o ciclo. Ela quer elimina-lo da suas células.
A semente que esta presente nesses encontros num dará flor. Apenas esta presente. Apenas cada um deles se sente sem forças para a adubar, regar e acalorar. Para novamente se tornar flor. Florir. A semente que antes floriu de forma espontânea e resistente a todas as intempéries morreu. Produziu uma única semente. Em cada um deles resiste. Em cada um deles produzirá uma nova flor. A ilusão, que sentem, por se sentarem á mesa de um café isso acontecerá, torna-se mais longínqua. Não dizendo o que não lhes vai na alma e no corpo. Algures existirá um outro sonho que a fará despertar que a fará tornar uma nova flor.
Nessa manhã de outono tudo se torna claro. A espera. A paciência. A virtude da paciência. O processo de perdão chegou ao fim. Os encontros cessaram. “Mais um calo” para coçar pensou ele. “Mais uma ilusão” para o baú pensou ela.

Capitulo 4 (O caminhante)



   O caminho que John trilhava tornava-se cada vez mais penoso. O «saco de acumular» que caminhava ao seu lado tornava-o mais consciente. As lagrimas por vezes eram uma torrente salgada a sair. Lavava-lhe a alma esse mar salgado. A dor que moderadamente sentia fazia com que as lagrimas não secassem. A dor profunda congela e cristaliza todas as suas lagrimas. “A dor profunda ou pequena produz efeitos contrários”, pensava. “Congela ou descongela. A luz forte cega-nos, enquanto que a moderada nos faz ver claramente o caminho”. Ele queria ver a luz. Ele queria sentir o calor do sol, o cheiro do mar, o silêncio das flores, o sabor da música, enfim, «la joie de vivre». Mas a dor é intensa. Uma acalma as outras. Uma delas sobrepõem-se às outras. Lembra-se de Mary e ainda sente remorsos. Culpa, de apesar de a ter amado não ter feito de tudo para a conservar. Procura na sua memória a distorção que fez ao contar a sua experiência com Lisa. “As dores inconsoláveis só podem ser minoradas quando contadas a alguém que sofra do mesmo mal”, pensava. Mas tudo não passou de um engano. Um dos seu enganos. Do conjunto de enganos que se acumularam ao longo da sua vida. Tem esses enganos presos a si e carrega-os as costas desde sempre. Só agora neste caminho que trilha é que tem consciência deles. Mas a vontade de os “tratar” de “reciclar” esses lixos tóxicos é imensa. Por isso volta a olhar para o caminho que trilha. Volta a olhar em volta. Vê o que o rodeia de uma outra forma. Torna-se mais consciente. Perdoa-se a cada passo e resolução que toma, a cada recordação que tem. A cada desculpa que pede. Faz de si um homem novo. Mas muito caminho ainda existe pela frente.
Mas quem é John, questiona-se o leitor. Quem é este caminhante que em tudo é parecido comigo, eu que leio, em alguma situação vivida por mim? Questionar faz parte da natureza humana. Procurar respostas é a essência de toda a vida cheia. John somos todos e nenhum de nós em qualquer situação que exija reflecção e ponderação dos nossos atos e resolução do caminho a seguir em qualquer altura da vida! Todos, porque em qualquer momento tivemos as agustias que ele sente e nenhum de nós porque essas agustias são apenas nossas e sentidas de uma forma que só nós as sentimos. A partir de uma determinada idade acumulamos fotos e molduras para não perder a memória do nós. Sentimos medo de nos perder de nós mesmos. John era um tipo prático. Um tipo comum a tantos outros. Com vontade de fazer, de realizar, de programar refletidamente cada passo que dava. Mas com a idade foi desaprendendo. Como alguém, um dia disse, “se viver o suficiente alcançarei a completa ignorância”, John sentia-se um completo ignorante há medida que avançava na idade. Cada passo que dava nesse seu caminhar sentia-se a como os balões a largar lastro para ganhar altura, para se tornar mais leve. As ilusões que foi acumulando são esse lastro que caminhando vai largando. As ilusões do quotidiano que nunca soube refrear que apenas lhe traziam mais ilusões. Enquanto vivia nelas sentia-se feliz. Mas não passavam de ilusões que rapidamente se desvaneciam com o fumo de um cigarro em plena ventania. Questionava-se! “O Questionar é pensar e quem pensa acaba sempre a contestar” alguém tinha dito já há algum tempo e concluía que “pensar prejudica a saúde”. O pensar fazia-lhe mal. Deixava-o em claro noites inteiras. Irritadiço tornava-se bruto para quem amava.

Capitulo 3 (O Caminhante)



John ainda se lembra do que escreveu numa folha velha, palavras que lhe ecoaram durante muito tempo: «do not be content with second best but only with the best». The best! Agora neste momento pensa, “mas porque temos que ser ambiciosos se nesse momento o que nos parece ser melhor não o é na realidade”.O momento fugaz e fortuito de pensarmos que isso ou aquilo ou aquele outro que não está á nossa frente é o melhor. Aquilo que temos é sempre melhor do que aquilo que não temos! Seremos felizes? Apenas e só, quando tristes não conseguimos ter aquilo que queremos? Love what you have and not what you need! Claro que sim”, pensa John enquanto caminha.
 Lisa e Mary eram mulheres de diferentes idades e de diferentes temperamentos. Mulheres que amaram John. Mulheres que sem pejo nenhum se entregaram de corpo e alma. Mulheres que pelo seu valor ficaram enraizados no corpo e na alma de John. Lembra-as agora com saudade e magoa. Deixou-as, largou-as, desprezou-as sem dar satisfação nenhuma. Não consegue pensar numa sem ter a memória da outra colada. Sem querer sentiu-se atraído por Lisa logo no primeiro contacto. Mulher de trato fácil e pronta a agradar. Mais nova, dois anos que ele. Convite para jantar em casa dela passou a ser habitual. Pantufas no fim. Pantufas compradas em conjunto com a escova de dentes após a primeira estadia em casa dela. Sentia-se como se fosse um sultão das arabias. Lisa sua concubina. Mas para ele era muito fácil. Fácil de mais. Demasiado fácil. Não estava habituado a essas mordomias. E muito menos a mordomias feitas por uma mulher. Assim John pensou que, exageradamente, poderia fazer com ela o que quiseste. Assim o idealizou e assim o implementou. Aprendeu as suas custas e deu por si a dizer certo dia, alguns anos passados, para um amigo que a «experiência é um pente que aparece quando ficas calvo». Começou por omitir e passou a mentir descaradamente. Mary apareceu por essa altura. Encontrou-a perdida num bar. Tinha-se divorciado á menos de uma semana de uma relação de oito anos. Divorciado é uma maneira de dizer. Na realidade não tinha casado. Apenas o casamento que se deveria ter realizado se esfumou como o fumo do cigarro que tinha entre os dedos. Finos, tal como toda a sua figura. Elegância em pessoa. John pensa agora que tinha ido a esse bar porque estava farto das perguntas de Lisa. Diria mais tarde que «Os homens mentiriam muito menos se as mulheres não perguntassem tanto». Lembra-se da história que Mary lhe contou quando no dia do “divórcio” chegou a casa. «Estava sentada no velho sofá a remoer a vida quando, um velho cão e com olhar cansado, decidiu entrar no meu jardim e assomou á porta de vidro da sala. Vi pela coleira e pelo brilhante que era bem alimentado e tratado. Veio calmamente até mim. Fiz-lhe uma festa. Depois segui-me e entrou em casa. Passou pela sala e foi-se deitar no sofá e adormeceu. Uma hora depois acordou e dirigiu-se para a porta. Pensei que deveria querer ir-se embora. E assim fez sem olhar para trás. No dia seguinte voltou e repetiu os mesmos gestos. Fiquei curiosa pois fazia isto todos os dias. Coloquei assim um bilhete na coleira, que dizia, «Gostaria de saber quem é o dono deste lindo animal e perguntar se sabe que ele vem todas as tardes dormir no meu sofá». No dia seguinte ele chegou com um bilhete na coleira que dizia, «Ele mora numa casa com seis crianças, duas das quais com menos de três anos, provavelmente ele está tentando descansar um pouco. Posso ir com ele amanha?» ”. Mary, com olhar cândido conta a historia e John com o semblante enternecido apaixonava-se pela história. Mas tarde lembrou-se que não era a história que o fizera ficar em estado de paixão, mas sim a maneira como era contada, com entusiasmo com aquele brilho nos olhos de quem se sente feliz com os acasos da vida, com as ironias do destino. Mas sem interromper continuou extasiado a ouvir. «Respondi claro que poderia vir e no dia seguinte por volta das seis da tarde, novamente, a cheirar o vidro da porta da sala lá estava ele. Vinha acompanhado por uma criança. Deveria ser essa criança que responderá ao meu recado. Entraram e conversamos algum tempo. O cão apenas se tinha voltado a enroscar no sofá e atento a nossa conversar adormecia por momentos. Mas os seus olhos abriam de vez em quando para verificar os nossos olhos de conversa. Foi um dos fins de tarde mais esclarecedores da minha vida. Aquela criança, a sua voz, o seu corpo singelo, a sua companhia trouxeram-me a paz que há muito ansiava. Depois daquele dia nunca mais os voltei a ver. Por mais que os procurasse nada soube mais deles. Amei incondicionalmente aquele momento. Tornei-me novamente amante de mi mesmo. Senti que amar é mais difícil quando o objeto do nosso amor nos aborrece constantemente” John persentiu nestas palavras a mágoa profunda que Mary trazia dentro de si. E acrescentou que “é mais difícil aborrecer quem nos ama que amar quem nos aborrece”. Esse pensamento ficou suspenso e associado á lembrança fugaz de Lisa. Aborrecer a quem nos ama é crueldade. E isso é o que tinha feito a Lisa desde que a conhecerá. Mas a torrente de palavras de Mary não o deixava seguir esse pensamento. Não o deixava ficar calado nos seus próprios pensares. Escutava Mary com afinco. A história que lhe contava fazia-o tremer de comoção pelo ser belo que se encontrava a sua frente. Amava já Mary sem o saber. A inquietação no seu ser era perversa. Trocar Lisa por Mary era a verdade nesse momento. Trocar na verdade não. Tornar-se vivo amando o momento, isso sim. E Lisa? Nela nada de mais se passava dentro dele. Apenas existia penar em relação a ele e a ela. Um salto vertiginoso da sua alma o impulsionava para a frente. Olhando para trás nada via.   




terça-feira, 23 de abril de 2013

Capitulo 2 (O Caminhante)



Após uma pausa prolongada, na pedra fria e molhada que tinha encontrado no meio do seu caminho, voltou a caminhar. O seu saco de problemas seguia-o de perto. Tão perto que o podia tocar, para isso bastava esticar a mão. Mas não o queria fazer. A sua árdua tarefa de caminhar, consumia toda a sua energia vital. Caminhar. Caminhar sempre. Olhou para o caminho que tinha a sua frente. Sentiu que era um bom caminho. Ao olhar para um arbusto viu um pássaro cor lilás. Continuou a contar os passos que ia fazendo. Sempre se distraia um pouco. O pássaro novamente à sua frente, agora numa árvore. Consciencializou que já o seguia há alguns minutos. Parava em cada árvore que encontrava à sua frente. Olhou para baixo. O seu olhar cruzou-se com o de John e disse-lhe, «vou-te acompanhar por algum tempo, mas este caminho tem que ser feito apenas por ti». John respondeu como se o compreendesse, «eu sei, eu sei». Veio-lhe, de repente, à memória o que dizia o seu pai. «Agora já és um homenzinho não precisas que seja eu a abotoar-te os sapatos, deves faze-lo sozinho senão tropeças». Tinha nessa altura dez anos de idade. Em muitas alturas John lembrou-se desse conselho. Como daquela vez em que sentado no seu restaurante preferido em frente ao rio, o olhou com outros olhos. Marisa ao pé dele olhava-o com a mágoa de alguém que tenta ser feliz e faze-lo feliz, mas não consegue. John não sabia ainda abotoar os sapatos sozinho. Ela cansada e em saturação tinha desistido dele. Aquela conversa deveria ter acontecido há já algum tempo. Mas por medo, ansiedade não a tinham concretizado. Marisa apesar de sonhadora era também prática tal como John. Sentiam-se mal na pele que tinham escolhido para dar um ao outro. Não magoar, não culpabilizar, não cobrar. Tinham dito isso já lá iam dois anos. Mas o que parecia inicialmente um mar de rosas perfumadas, carinhos para ali, caricias para acolá tinha-se tornado em espinhos não ditos para ali e verdadeiras silvas para acolá. E num momento de stress tudo desabou. Dissera aquilo que queria e aquilo que não queria. Ouvira também aquilo que queria e não queria. Alguém em determinada altura pensou e escreveu, “A vida não é simples. A vida parece simples. Todos querem crer que a vida é simples, quando na verdade, a vida é como um piano. Um piano também parece simples, com apenas duas cores. Preto e branco. A vida é um conjunto de harmonias em simultâneo. A vida é feita de acordes, escalas cromáticas e simples staccatos. Por trás de um conjunto de teclas de ébano e marfim, existem martelos e cordas que não são tão simples como as simples cores preto e branco que um piano aparentemente apresenta.”

 John e Marisa tinham transformado as suas vidas em dois pianos desafinados. Marisa ainda tentou. Sendo mais sensata tornou-se mais coerente com o seu modo de agir. Não importunava, não criava situações de conflito, não conversava de coisas que pudessem fazer desentendimentos. John pelo contrário. Tudo fazia por azedar toda e qualquer comunicação. Por simples coisas como o atraso num cabeleireiro por parte dela. Ela a ficar bonita para ele. «Eu estúpido a perde-la por minutos», pensa agora que caminha. Por mais que tentassem afinar os seus pianos e entrar em sintonia não tinham entendido que só um afinador de pianos os podia concertar. Por fim tinham deixado de se ver. Inicialmente ainda conversavam pelo telefone. E de repente tudo terminou.

Passara-se cerca de um mês e meio e tudo estava tranquilo até aquela fatídica noite em que lhe veio a angústia ao peito. Lembrando-se da relação que tinha tido com Marisa. Lembrou-se agora que algures tinha imaginado que, um homem não lhe chama relação, refere-a como um romance ou um período de namoro. Quando acaba a reação é diferente no feminino e no masculino. Enquanto a mulher chora, desabafa com as amigas e escreve um poema chamado, «todos os homens são otários» e depois continua a sua vida, um homem tem um pouco mais de dificuldade em esquecer. Durante seis meses a sua ex não ouvirá falar dele mas de repente, às três da madrugada de um domingo, ele telefonará e dirá «é só para que saibas que arruinaste a minha vida e nunca mais te perdoarei, odeio-te e és uma vaca. Mas queria dizer-te que há sempre uma possibilidade para nós os dois recomeçarmos». John pensa que terá dito algo do género. Lembra-se que como a maioria dos homens fez o telefonema, «eu odeio-te / eu amo-te». Quanto mais caminhava, John, mais pensava que tinha perdido a oportunidade de deixar de ser um caminhante errático. Não é que não gostasse de o ser mas estava a ficar cansado de caminhar sem rumo.   

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Capitulo 1 (O Caminhante)



Ele caminhava para longe? Para muito longe! Caminhava apenas. Não sentia vontade de parar desde que há algum tempo tinha iniciado a marcha. Cada vez mais se sentia com vontade de caminhar. A cerca de dois metros, vinham atrás dele, os problemas. Os seus problemas. Tinha-os deitado para trás das costas. Quanto acelerava o passo eles aproximavam-se. Decidiu que seriam companheiros dele nessa jornada. Não adiantava acelerar que nunca os deixaria para trás. Caminhava apenas. O caminhar fazia-lhe bem. Sentia-se bem. Não tinha os problemas em cima das costas. Elas folgavam e por isso mais claramente podia pensar neles e tentar resolvê-los. Pensou. Um de cada vez. Apenas um de cada vez. Mas antes tinha que saber se o que o perseguia eram problemas. Se eram realmente problemas aquele «saco de acumular» que o seguia. Sim. Seguia-o para onde fosse. Onde estivesse, sentia sempre esse saco em cima das costas. Encontrava-se numa encruzilhada. John era um tipo prático. Um tipo comum a tantos outros. Com vontade de fazer, de realizar, de programar refletidamente cada passo que dava.
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Lembrou-se que naquele dia distante se encontrava num bar de uma festa de gente bonita ouvindo o que mais gostava, música que já não se faz. John sentiu aquele lampejo, aquela sensação indescritível, mas que facilmente é reconhecível por qualquer um que já a tenha sentido. O tipo de intuição que nos martela a cabeça e faz com que nós pensemos que estamos na presença de alguém, apesar de não a conhecermos, que será a resposta para todos os nossos porquês, os nossos indefinidos, acima de tudo a nossa busca. John pensou e quis acreditar ter visto nela, nos olhos dela, o mesmo tipo de faísca que se acendera dentro dele. Bastaram dez minutos de conversa banal para que acreditasse. Tinham os mesmos gostos, o mesmo falar pausado e a mesma calma na voz. Gostavam do mesmo tipo de música. Aparentemente o ajustar era perfeito. Faziam críticas ao mesmo tipo de comportamento que as pessoas apresentavam. Apesar desta sintonia discordavam de alguns pormenores. Parecia bom sinal. Mostravam que tinham apesar de tudo, (o querer agradar no primeiro encontro leva-nos a concordar quase de imediato com o outro) a personalidade e carácter vincados. Ou seja, tudo parecia uma identificação instantânea.
Tudo corria bem até que John decidiu sondar um pouco mais o “feminino” que lhe tinha aparecido de repente na sua frente. Bem, de repente não é bem assim. Estando sentado a curtir um som com o seu grupo nem reparou que Clara se tinha aproximado dele. Só reparou nela quando lhe disse, «posso sentar-me?», apontado para o banco que estava a sua frente. «Claro, claro», respondeu. Com muito cuidado foi reparando nela. Com muito mais cuidado, depois de se terem apresentado e da conversa inicial, perguntou: «Não és destas bandas?» e acrescentou, «estás com alguém?». A resposta não se fez esperar. «Não sou e vim com o meu namorado, aquele além», apontando com o dedo para o tipo que estava no meio da pista a dançar. O sangue de John arrefeceu, quando ouviu o termo namorado e gelou quando o seu olhar fixou o Neandertal que gesticulava por todos os lados como se de um gorila se tratasse. John, reconheceu-o, era um antigo colega seu de faculdade. Chamavam-no de “Mr.O”. O nome dele? Orlando. Mas o “Mr.O” tinha outro significado. Veterano do curso de engenharia, nunca aparecia nas aulas. Mas nunca faltava a uma festa. Pela corpulência, um pouco desajeitada, era em surdina apelidado de “Ogre”. Mas tinha algo que as raparigas da faculdade achavam algum interesse, talvez porque certo dia, tenha salvado das garras de um namorado tresloucado, uma certa donzela. Claro está, que isto se espalhou por todas as donzelas da faculdade ávidas de novidades. O namorado tresloucado teve que ser hospitalizado e mudou de faculdade. “Mr. O”, sentia-se um autêntico guarda donzelas. E não havia festa que não comparecesse para ser útil em qualquer situação de emergência.  
John ao retirar o olhar de “Mr. O” que continuava a gesticular para todo o lado, tinha um meio sorriso amargurado e a fazer um esforço por não se desmanchar a rir. Tal como numa comédia romântica, a mulher, (o mulherão!) que se encontrava a sua frente namorava com o maior troglodita que até então tinha encontrado. Mais, “Mr. O” aparentemente mal se lembrava que Clara se encontrava no bar. Assim, John propôs a Clara, que fossem até ao terraço que se encontrava para lá da porta de entrada do bar para estarem mais à vontade e não serem importunados pelo olhar por vezes inquisitório de “Mr. O”.
Quanto mais John conversava com Clara mais inconcebível lhe parecia que “Mr. O” não encaixava na candura e na afectuosidade dela. A dúvida tornou-se incompreensão, que por sua vez se transformou em indignação ao ponto de exclamar com um surto nervoso de romantismo, «Como é possível que andes com um bruto como aquele? Não tens nada a ver com ele! Eu posso dar-te muito mais do que ele. Eu poderia dar-te até a lua e as estrelas se me pedisses!»
De rompante, por trás deles aparece uma voz a dizer, «Podem parar com essa merda?». A voz foi tão cavernosa e intensa que a música parou para a fazer ecoar mais profusamente. Claro está que um amigo de “Mr. O” tinha dito ao DJ para parar a musica no momento exacto em que ele, “Mr O”, se chegasse ao pé do casal de pombinhos. Assim o séquito de presentes assistiu em direito e a cores a cena de telenovela mexicana de fim de tarde. «Onde vocês pensam que estão?» Continuou “Mr. O”, «Nós estamos aqui ao lado e acham que somos surdos?» John cheio de coragem, ou de cerveja, decidiu enfrenta-lo. «Não faço nenhuma questão em esconder o que disse. Não mereces uma mulher como Clara». Sente-se a tensão no ar. Tudo suspenso à espera do desenrolar dos acontecimentos. Apostas são feitas mentalmente. Há quem pense que «a este vai-lhe acontecer o mesmo que ao outro». Mas “Mr. O”, mantendo-se calmo, apenas esboçando um sorriso sarcástico responde, «Ah... Conheço os da tua laia. O velho truque do D. Quixote. Então achas que és melhor do que os outros, que és o cavaleiro em busca da verdade e da justiça, que salvará as donzelas em perigo. Pois fica sabendo que quando conheci Clara ela estava sozinha. Se algum de nós esta errado és tu. O senhor, cavaleiro da armadura brilhante, é só mais um folgado a tentar roubar a namorada dos outros. Se fosses tu que estivesses no meu lugar não irias pensar duas vezes antes de me condenar. E apesar de achares que estás a fazer a coisa certa, acontece que a tua donzela virginal no momento que te escolhe e vai contigo torna-se numa qualquer que trai o namorado com o primeiro malandro que vem com conversa mole. O resultado seria, nobre cavaleiro protector de donzelas, que o D. Quixote e a bela donzela se tornariam um velhaco e uma rameira. Vamos embora daqui» E enlaçando Clara pela cintura, mas com a delicadeza de uma retro-escavadora, “Mr. O” encaminhou-se para a porta de saída e resmungando ainda disse, «Lua e estrelas, …, além de tudo faz promessas que não pode cumprir!» Saíram do bar, mas não sem antes Clara lançar um olhar para trás e atirar uma piscadela safada para John.
A caminhada contínua teve ser interrompida. Sentiu que necessitava disso. A lembrança deste episodio fez com que John sentisse que “Mr. O” tinha toda a razão. A vida não é uma comédia romântica e amaldiçoou novamente a lógica e a realidade como na altura o fez quando ficou especado de pé a ver o casal sair do bar.
Sente-se um pouco cansado ao lembrar-se desta história. Deste problema carregado há alguns anos. No entanto, retirou dele um conselho útil. E assim, esvaziou um pouco o seu saco.